Skald Sérgio, Kéfren D'Utafle, S.R.Linguite

Múltiplos nomes; Múltiplos textos; Múltiplas personalidades…

Teuthis, o Demônio dos Oito Tentáculos – Skald Sérgio

      O grupo estava disperso pelo campo de batalha. Cinco guerreiros e duas magas, nada mais, fazendo frente a um grupo de dezoito inimigos. A irritação, porém, queimava, e cada um olhava para os oponentes como se pudessem acabar com todos sozinhos. Principalmente Bhiaka. Enquanto os outros guerreiros flanqueavam o bloco adversário ele seguia, resoluto, para um ataque direto. Do alto de seus mais de dois metros de altura, uma montanha de puro músculo envolto em metal reluzente, olhou para cada um dos companheiros, e sua voz soou aos ouvidos deles como se estivessem próximos, ainda que seus lábios sequer se movessem. “Eles não sabem sobre o que nós temos”, dizia, “vamos fazê-los se arrepender.”

      Apenas Zork, o Reptante, conseguia ser mais alto que o grande guerreiro. O homem-lagarto, de escamas azul-petróleo e dois machados curtos cujas lâminas se estendiam paralelas aos cabos, protegendo suas mãos, era com certeza uma das imagens mais aterrorizantes que se poderia oferecer a um inimigo.

      Mal o grupo começou a se mover uma chuva torrencial caiu sobre o campo de batalha, apagando o dia. Não era chuva comum, nunca chovia naquela área e eventos especiais como este jamais aconteceriam sem aviso. As duas magas, na retaguarda, se entreolharam. “Bhiaka”, Celina, a Feiticeira de Aço, chamou, também sem mover os lábios, “o que é isso? Você sabia sobre essa chuva?”

      “Não”, respondeu Bhiaka, testando o solo sob seus pés. Sua movimentação estava mais lenta, até mesmo incerta, com escorregões que, com certeza, não estariam a seu favor, tendo em consideração que o outro grupo defendia os portões da cidade na parte alta do morro.

      “E se for magia?”, se preocupou Kas, Sacerdotisa de J’rkrl.

      “Estamos muito distantes”, disse Celina, “a não ser que o mago mais poderoso do mundo esteja com eles.”

      A conversa alcançava todo o grupo, e não houve quem não reconsiderasse o ataque. Era impossível evitar o frio no estômago, embora Kas tivesse um motivo a mais. Estava ali por Bhiaka — não o líder, a pessoa.

      “Não existe magia que faça chover”, Bhiaka afirmou com a voz firme. “E mesmo que houvesse, um mago capaz de fazer isso, a essa distância, com certeza teria preferido uma bola de fogo. Isso é outra coisa.”

      “Outra coisa?”, ecoou Wolf, dos Olhos de Fogo. “Você não quer dizer?…” Deixou subentendido.

      “Sim.”

      “Se for isso”, quem considerava era T’sur, o Jaguar, “não temos como vencer.”

      “Se for isso”, Bhiaka sorria por dentro, considerando a hipótese, “nós já vencemos.”

      “Problema resolvido.” A voz de Luk causou espanto no grupo.

      “Você sumiu o dia todo”, cobrou Hsing Estrela Negra.

      Chegava ao campo de batalha o sexto guerreiro, Luk, o Mestre das Chamas, com seu rosto vermelho do constante trabalho na forja e seu grande machado de duas mãos. Com as duas magas estavam agora em oito: eram o temido Teuthis, o Demônio dos Oito Tentáculos!

      “O importante é que eu cheguei, o resto eu explico mais tarde”, disse Luk. “Bhiaka, estão de olho.”

      “Perfeito.” O grande guerreiro puxou sua espada, massa desproporcional de metal moldado, gigantesca. Ele a apoiou deitada no ombro direito, lâmina voltada para fora, a chuva encontrando a larga superfície lateral da arma com o primoroso entalhe de um dragão. Seus inimigos aprenderiam a temer aquela arma; apenas um instante antes de perecer sob seus golpes.

      “Bhiaka, tem que ser agora. ‘Tá no limite!”, apressou Celina.

      “Vamos lá. O Luk já trouxe a confirmação da nossa vitória!”

      Bhiaka correu morro acima pela lama, escorregou algumas vezes, observou o grupo inimigo caminhando devagar para não perder a formação nem a vantagem do campo de batalha inclinado, e se atirou contra seus escudos. Usava a monstruosa espada com as duas mãos, o que lhe deixava apenas com a armadura para lhe proteger – e o espaço que criava ao seu redor ao brandir a comprida lâmina. Então o pesado cavaleiro surpreendeu a todos e, num salto mais alto do que o peso de sua arma e armadura permitiriam, pisou a borda de um dos escudos e passou por cima de seus inimigos. Foi nesse exato momento que a magia de Celina desapareceu. A imagem de Bhiaka estava ainda no ar, sobre seus inimigos, quando ao golpe de uma lança pareceu se rasgar, como um papel teria se rasgado sob o temporal. Enquanto isso, aproveitando-se da lama e deslizando entre as pernas dos oponentes, outro guerreiro inesperadamente atacava. Eles estavam enfrentando T’sur, o Jaguar. Foram enganados por uma ilusão. Os defensores conheciam seus adversários e haviam se dividido de modo que as pessoas certas enfrentassem cada um dos guerreiros, de acordo com suas boas vantagens. Bhiaka havia previsto isso, aquele grupo com certeza estaria preparado para eles, e com esta certeza em mente havia elaborado sua estratégia. As habilidades de Celina para utilizar ilusões em combate eram raras, e sempre menosprezadas.

      O primeiro grito veio da direita, Wolf fazia jus a sua alcunha e, com um brilho rubro como o fogo nos olhos, atacava numa fúria sem fim. O Berserk havia se apossado de sua consciência, tornando-o uma máquina de matar. Suas espadas gêmeas desferiam golpes sem fim enquanto o guerreiro em fúria fazia apenas avançar. Os que o enfrentavam esperavam pelo Estrela Negra, mais rápido porém menos forte, num estilo mais contido e estratégico de luta, e foram pegos completamente desprevenidos. Assustados, pareciam crianças indefesas.

      O verdadeiro Hsing Estrela Negra também saía-se bem. Fazia frente a guerreiros muito mais lentos do que ele, incapazes de se defender de seus golpes, ou de atravessar a precisão de seu broquel, e os sangrava aos poucos. Atacava e caminhava, vagaroso para não escorregar sob a chuva, colocando-se no meio dos inimigos. T’sur, pequeno e rápido, atacava os oponentes pelas costas, correndo abaixado entre suas pernas, derrubando, desarmando, golpeando os pequenos pontos em que suas armaduras não os protegiam.

      Bhiaka parecia um pequeno furacão no campo de batalha. Atacava com golpes horizontais, girando o corpo com o peso do movimento, cortando em todas as direções qualquer um que tentasse se aproximar. Era difícil se manter em pé após cada golpe e ele fincava fundo seus pés na lama para evitar uma queda. Não fosse isso com certeza teria mais velocidade e precisão. Ainda assim, seus golpes pareciam estar sempre à procura de algum pescoço. Zork e Luk, do outro lado, eram apenas machados, destruindo escudos, empurrando os inimigos para T’sur. Zork ainda atacava com a longa cauda. Celina subia caminhando, murmurando feitiços, e a cada sentença proferida a arma de algum companheiro brilhava em suas mãos, para em seguida rasgar, perfurar ou esmagar os adversários com mais facilidade. Kas enviava raios de luz até Wolf, que não se defendia em sua fúria, e curava seus ferimentos enquanto ele causava outros, novos, aos inimigos. Preferia estar do outro lado do campo de batalha, com Bhiaka, mas não iria desobedecer a estratégia do grupo. Dois magos haviam surgido também para defender e curar os oponentes — e T’sur e Hsing se deslocavam até eles com velocidade e precisão. Deixaram suas costas descobertas e três guerreiros inimigos tentaram fugir de seus oponentes para enfrentá-los. Não perceberam Kas, que havia parado de curar Wolf e fazia outro feitiço, um que inscrevia o ar com letras vermelhas de sangue. Seis oponentes já haviam caído em batalha, e estes mesmos corpos agora se levantavam novamente. Kas trazia a morte para lutar ao seu lado. Eram agora quatorze contra doze — os números estavam, finalmente, a seu favor. Os mortos-vivos protegeriam os dois ágeis guerreiros que abandonavam a batalha para caçar magos.

      Foi quando a espada de Bhiaka procurou um pescoço e o atravessou, mas sem causar qualquer dano, como se fosse novamente uma ilusão. Wolf escorregou os dois pés ao mesmo tempo e caiu e dois inimigos se atiraram sobre ele. Kas perdeu o controle dos mortos-vivos, o que nunca acontecia, e eles começaram a andar dispersos pela batalha, atacando qualquer um que aparecesse em seu caminho. T’sur e Hsing, desprotegidos, ficaram entre os magos e os guerreiros que os seguiam, flanqueados – não importava para que lado olhavam, sempre havia um inimigo às suas costas. Pararam, as costas de um nas costas do outro, Hsing com seu escudo defendendo‑os das magias, T’sur, com sua precisão, aparando os golpes dos guerreiros que os perseguiram.

      Aquele que Bhiaka tentara atingir era o líder dos inimigos, e tomava nova força e coragem com o que presenciava. Pensara, por um momento, que seria parte de uma derrota humilhante num confronto desigual, mais de dois contra cada um, mas isso não acontecia. Isso jamais aconteceria — mesmo que estivesse enfrentando os lendários Teuthis, o grupo que reunia oito dos guerreiros mais poderosos do mundo. Mas ele, Lorde Elijah, também estava entre estes mais poderosos. Não se podia falar o mesmo de seus companheiros, porém eles não eram tão fracos também. E sabiam o que ele queria quando aceitaram se juntar à sua Ordem. Sabiam que estavam indo de encontro à glória ou à morte.

      “O que está acontecendo?”, Bhiaka escutou T’sur perguntar, mesmo que estivesse do outro lado do campo de batalha.

      “Fique na defensiva, proteja Wolf. Isso vai mudar.” Respondia Bhiaka.

      “Luk, tira esses caras de cima do Wolf”, chamava Kas, que esgotava rapidamente sua capacidade de curar o amigo. Tinha ainda algum poder, mas estava reservado; ela era a guardiã de Bhiaka.

      Luk e Zork estavam cercados, um de costas para o outro, protegendo-se mutuamente, mesma estratégia de T’sur e Hsing. Os mortos-vivos haviam se voltado contra eles. Celina disparava raios de suas mãos, tentando afastar o grupo de inimigos que buscava alcançar a ela e Kas. Era raro que um mago conseguisse utilizar armadura, como ela fazia — o que lhe rendia a alcunha de Feiticeira de Aço. Celina era a exceção — e Kas não tinha esta defesa a mais. Por fim puxou seu sabre e utilizou o pouco de poder que ainda lhe restava para fazer o melhor feitiço de defesa que poderia na arma. Porém eram muitos inimigos e o feitiço não duraria para sempre.

      Lorde Elijah se colocou à frente de Bhiaka, um contra um. Duelo. A espada de Bhiaka não o obedecia como deveria, e quando o fazia não cortava como se esperava. A lâmina do oponente vinha de todos os lados, ele circulava Bhiaka e atacava. Bhiaka apenas se defendia. Aquele estilo não seria problema para seus golpes circulares, se estivesse conseguindo utilizá-los como gostaria. Naquele momento, porém, era inútil desgastar suas forças. Sentia, porém, que o solo traiçoeiro sob seus pés o entregaria ao oponente a qualquer momento.

      Então vieram outros golpes. Aquilo não era um duelo, ataques circulares não eram o verdadeiro estilo do seu oponente. Sem perceber, Bhiaka havia dado as costas para a batalha, e recebia o lembrete de que não há honra na guerra. Três adversários o atacavam por trás, sangrando sua vida. Tentou seu melhor golpe, um giro completo, buscando atingir todos. A espada cortou apenas o vento, o que serviu, ao menos, para assustar seus inimigos e levá-los que recuar. Escorregou e caiu de joelhos, mas ao menos agora olhava para a batalha novamente. Às suas costas ainda tinha seu principal oponente, mas ele era apenas um; teria que dar um jeito nele depois. O resto do time estava tendo trabalho também; não conseguiam chegar até Wolf, ainda caído e à beira da morte.

      “Minhas magias não funcionam”, Bhiaka escutou Kas gritar, num misto de revolta e desespero.

      Buscando as forças que já lhe faltavam, Bhiaka correu para o resgate do amigo. Sabia que estava muito mal, que não conseguiria sozinho, portanto se desvencilhou de seus adversários e se atirou contra as linhas inimigas que impediam Zork e Celina de alcançar o companheiro. Não estava forte para vencê-los mas conseguiria atrapalhar o suficiente para o lagarto atravessar a parede inimiga. Então, em desespero, Bhiaka começou a atacar cegamente. Zork também atacava o mais rápido que seus braços podiam. Celina se afastava protegendo Kas. Hsing e T’sur, com dificuldade, sobreviviam.

      E então Zork derrubou dois inimigos.

      “Acho que reaprendi a bater!”, gritou a fera, despejando machadadas para todos os lados.

      Bhiaka compreendeu, finalmente haviam lhe garantido a justa vitória. “Cure o Wolf, Kas! Sua magia voltou.”

      Essas foram as últimas palavras de Bhiaka.

      Lorde Elijah estava novamente sobre ele, despejando golpes, atacando com a parte do seu grupo que ainda restava viva.

      “Zul ad amla, anivid ef, epmil ues oproc ed odot lam!” Kas evocava sua melhor magia para curar Bhiaka. Demorou um instante para absorver a realidade; a luz prateada vagou sobre um corpo que desfalecia e retornou ao seu peito. Bhiaka caía, inerte. Por reflexo, curou Wolf. Só então compreendeu o que acontecia.

      A batalha estava equilibrada novamente mas, estranhamente, havia perdido suas cores. Bhiaka estava morto; e com ele parte do espírito guerreiro de todo o grupo. Seu líder os abandonava.

      Kas foi a primeira a trocar a tristeza pelo ódio. Recuperou o controle dos mortos-vivos e os atirou contra os inimigos como bestas infernais. Zork despertou em seguida; fora Bhiaka quem, desde o início, o acompanhara. Apenas ele estava lá quando Zork conquistou suas escamas. Seus machados refletiam o respeito que tinha por seu líder. Wolf parecia controlar a força de mil guerreiros, num frenesi de batalha nunca visto. O Jaguar atacava como o animal ferido que se tornara. Hsing e Luk eram apenas gritos de vingança enquanto Celina encantava as armas, despejando um poder que não imaginava lhe restar, dando força às habilidades que retalhariam os inimigos. Lorde Elijah ainda lutava com afinco enquanto seus companheiros apenas se escondiam sob uma defesa que nada mais era que pânico, tentando fugir aos golpes que choviam, pesados, buscando o fim de suas existências. Então uma luz atingiu o campo de batalha. Bhiaka, em pé, observava em fúria aquela guerra que ainda perdurava. Não havia ninguém, naquele momento, capaz de fazer frente àquele grupo, no estado em que se encontravam. Bhiaka renascia. O espírito de vingança e de esperança se uniam, multiplicava novamente seu poder naquilo que deixava de ser uma batalha para se tornar uma retaliação.

      Desacreditado do que via e percebendo a derrota iminente, Lorde Elijah sentiu o medo lhe espremendo as entranhas. Um fantasma destruía seu pequeno exército particular. Ele era o guerreiro mais poderoso de seu grupo, mas não conseguiria salvar a todos. Então, usando-os como última barreira, resolveu fugir. Sua fama de covarde se espalharia pelo mundo, mas ao menos seria um covarde vivo.

      No entanto a fama que se espalharia, posteriormente, seria a de traidor. Lorde Elijah havia escolhido seu caminho, fadado à solidão.

      “Bhiaka, você voltou”, o grupo dizia, ao fim da batalha.

      “Não”, retrucou, sério, Bhiaka, “eu apenas lutei minha última batalha com vocês.” Olhou para o lado e só então os companheiros perceberam que seu corpo continuava no chão, caído. “Lutem por mim como eu lutei por vocês.”

      “Isso é injusto, a falha não foi nossa!” dizia Luk.

      Bhiaka fez sinal para o interromper. “Explique a eles o que aconteceu. E digo, não acontecerá novamente. Foi para trazer esta mensagem que me enviaram de volta: não acontecerá novamente! Foi uma grande honra lutar ao lado dos melhores.”

      E dizendo isso Bhiaka apenas desvaneceu.

      Os heróis haviam salvado a cidade, o povo já se juntava ao seu redor gritando vivas aos libertadores. Mas a que preço haviam conseguido?

      Kas e Zork murmuravam palavras de vingança ao covarde Lorde Elijah.

Deixe um comentário

Informação

Publicado às junho 24, 2015 por em Skald Sérgio e marcado , , .